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PRINCÍPIOS E POLÍTICAS: PARA ALÉM DAS REGRAS JURÍDICAS – Vera Karam de Chueiri

PRINCÍPIOS E POLÍTICAS: PARA ALÉM DAS REGRAS JURÍDICAS – Vera Karam de Chueiri

1. Para além das regras jurídicas: a jurisprudência atual se vincula, inexoravelmente, à teoria e à filosofia moral, posto que as questões que se lhe insurgem, são, no seu âmago, questões de princípios morais e não meramente fatos jurídicos ou estratégias políticas.

Portanto, uma jurisprudência sensível, que enfatiza a questão dos princípios (da moral) deve não só mostrar as ligações que se estabelecem entre a prática jurídica e a prática social, mas, também, empreender um programa contínuo de exame e crítica à prática social. A relação entre princípios morais e prática jurídica, a luz da jurisprudência pós-Hart, sofistica, ao redimensionar, a análise a que são, usualmente, submetidas as questões cotidianas do direito, na medida em que se estabelece uma ponte entre teoria jurídica e a teoria moral, a justificar uma coerente tomada de decisão.

Para Dworkin, os princípios são referidos, genericamente, como conjunto de normas outras (diferente das regras jurídicas positivas), incluída aí a noção de política (policy), a qual diz respeito a um tipo de norma cujo objetivo é o bem-estar geral da comunidade, no sentido do seu improvement econômico, político e social. Especificamente, o termo princípio vai se opor a esta noção de política, ao dizer respeito a um tipo de norma cuja observação é um requisito de justiça ou igualdade, ou ainda, de alguma outra dimensão da moral.

Na constituição brasileira, os artigos 1º, caput e incisos, 2º, 4º e 5º, caput e incisos são exemplos de normas que funcionam como princípios, enquanto a maior parte dos artigos que integram a ordem econômica e social, a começar pelo artigo 170, são exemplos de normas que se referem às diretrizes do governo, às chamadas políticas públicas as quais, portanto, funcionam como políticas. Pode-se referir àqueles como normas-princípio e a estes como normas programáticas.

Para Dworkin, sacrificar um direito em nome de uma política pública só seria justificável, com restrições, na esfera de uma decisão política e nunca de uma decisão judicial.

Neste sentido, deveriam os tribunais buscar princípios que, singular ou coletivamente, se constituíssem, antes, em diretrizes para a decisão judicial, do que na mera explicação das regras jurídicas existentes.

“Quando os juízes constroem regras [...] não anteriormente reconhecidas, não são eles livres no sentido em que eu acabei de dizer que são os legisladores. Os juízes devem tomar suas decisões costumeiras apoiados em princípios e não em políticas; devem desenvolver argumentos acerca do por que as partes tinham, de fato, ‘novos’ direitos e deveres jurídicos – os quais eles obrigam a observância – quer no momento em que agiram, quer em algum outro momento pertinente no passado” (Dworkin: 1997, p. 244).

2. A tese dos direitos (the Rights thesis): essa tese assevera – duplamente – na prática a dimensão política do jurídico, na medida em que joga para as decisões judiciais o fazer valer ou fazer cumprir (enforcement) dos direitos existentes: primeiro, ao lançar mão de um princípio, de um objetivo político individualizado, identificando, interpretativamente, através do mesmo a existência de um direito. Segundo, ao articular este direito pré-existente com a história institucional, com os precedentes. Assim, impera a moralidade pessoal do juiz – enquanto membro de uma instituição que comporta uma teoria política – através da sua argumentação baseada em princípios e a moralidade institucional contida no precedente. Ambas constituem-se em ingredientes indispensáveis para o julgamento político dos juízes.

A articulação entre os princípios e as decisões políticas passadas requer a existência de uma coerência no sentido da aplicação do princípio no qual se apoia e não meramente no sentido da aplicação de uma regra particular anunciada em nome daquele princípio. Esta coerência está na base do direito como integridade.

Segundo a tese dos direitos são incoerentes decisões que consideram os direitos isoladamente sem os referir a uma ampla teoria de princípios, politicamente fundamentada, a qual é consistente com outras decisões que foram tomadas e com decisões que, hipoteticamente, venham a ser.

A tese dos direitos distingue, objetivamente, direitos individuais e fins sociais, bem como a dimensão concreta daqueles, na qual reside sua força argumentativa. Desta forma, os direitos individuais consistem em objetivos políticos individualizados, enquanto os fins sociais consistem em objetivos políticos não individualizados.

Constitui-se a tese dos direitos numa técnica de decisão judicial, cujo intuito é minorar a ocorrência de decisões falaciosas que, por fim, ganham a qualidade de jurídicas, consagrando-se institucionalmente.

“As regras sempre contém um antecedente ‘se’ especificando as características típicas da situação que constituem as condições de aplicação, enquanto os princípios ou aparecem com uma pretensão de validade não específica, ou estão restritos na sua aplicação pelas condições gerais que demandam interpretação” (Habermas: 1996, p. 208).

3. A tese da resposta certa (the right answer thesis): a crítica de Dworkin em oposição a estes argumentos e em defesa da sua tese da resposta certa, refere-se a má compreensão positivista que faz com que o efeito de uma regra sobre o direito seja determinado pelo significado das palavras.

No entanto, através da interpretação poder-se-ia superar a indeterminação ou vagueza que se apresentam nas regras, na medida em que se buscariam, a partir das mesmas, os princípios ou políticas que melhor agasalhassem as pretensões das partes. Dworkin tenta mostrar que mesmo através dos mecanismos utilizados pelo positivismo, como a mera exegese dos textos legais (a interpretação no seu uso corrente), poderia o juiz chegar à melhor justificação política possível; a decisão; à resposta certa, sem que para isso, tivesse que criar um novo direito.

4. A cadeia do direito (the chain of law): a concepção de Dworkin do direito enquanto um conjunto interpretativo, o leva a crer que o direito será melhor compreendido, na medida em que a experiência estética – a imaginação literária e o modelo narrativo – seja trazida para dentro da teoria jurídica.

Para Dworkin, “a interpretação construtiva é uma questão de impor propósito ao objeto ou à prática em questão, no sentido de torná-los o melhor exemplo possível da forma ou gênero ao qual eles pertencem” (Dworkin: 1997, p. 52).

O intérprete ou participante da prática jurídica, ao interpretá-la, propõe-lhe valores, na medida em que descreve o esquema de princípios que tal prática deve subscrever e expressar. Todavia, é possível que cada intérprete atribua valores diferentes à prática jurídica, os quais irão competir entre si. Neste caso, o critério para preferir uma interpretação a outra é o de qual interpretação tornará a prática jurídica – o direito – à melhor possível.

Interpretar uma obra literária é uma tentativa de mostrar qual a forma de ler o texto que o revela como a melhor obra de arte. Isto é o que Dworkin chama de “hipótese estética”.

A ideia da qual se parte é a da chain of law que, analogamente ao exercício literário de construção de um romance, pretende edificar uma decisão jurídica. Assim, os juízes deveriam encarar sua decisão (o ato de criação) como um capítulo a mais de uma história já iniciada por outros e, portanto, levar em conta o que já foi escrito (ato de interpretação), no sentido de não romper com a unidade e coerência da história. Cada juiz (ou escritor) deve fazer da sua decisão (ou texto), naquele momento, a (ou o) melhor possível.

Cada juiz funcionará como um parceiro na cadeia, interpretando o que já fora escrito, pois a cada um cabe fazer avançar esta história, a qual remonta a inumeráveis decisões, convenções, estruturas e práticas.

O argumento que ele constrói deverá mostrar que ele interpretou a prática jurídica, na sua melhor forma. Como na interpretação literária, deverá o juiz observar as dimensões de ajuste e valor, isto é, sua interpretação deve se ajustar à prática jurídica – a um ou mais precedentes, por exemplo – e ainda deve mostrar o valor desta prática – desta linha de precedentes (decisões passadas).

A coerência na cadeia de direito satisfaz o princípio da segurança do direito ao mesmo tempo que satisfaz o requisito da legitimidade do direito.

Uma narrativa jurídica coerente demanda consistência entre os princípios e as decisões políticas passadas e também consistência entre as convicções morais do juiz e os princípios éticos gerais.

A opção interpretativa em detrimento das teorias semânticas dominantes (o positivismo, sobretudo) procura compreender o caráter argumentativo da prática jurídica para desvelar o sentido do direito como dimensão simbólica da equidade, da justiça.

Na esteira da chain of law, o direito é um exercício de interpretação construtiva, interessando-lhe antes os propósitos e intenções do intérprete, conquanto surja como consequência das intenções do autor. Eis a ideia habermasiana de que a interpretação supõe que o autor possa aprender com o intérprete.

O êxito da interpretação pressupõe que os atores sociais compartilhem o mesmo universo linguístico, pois do contrário a comunicação torna-se impossível. Isto implica, antes, na adoção de determinados paradigmas, do que na mera concordância abstrata sobre um conceito.

De qualquer maneira, há um ponto paradigmático, por assim dizer, que segundo Dworkin é o mais abstrato e fundamental da prática jurídica, qual seja, orientar e imitar o poder coercitivo do Estado e assim, justificá-lo, de forma que o uso da força só é possível pois desejado e autorizado pelos direitos e responsabilidades individuais.

Para Dworkin a melhor teoria do direito é a que ele denomina de “o direito como integridade”, pois o conceito de direito que ela oferece resulta de um exercício de interpretação construtiva. O poder coercitivo é, segundo o direito como integridade, melhor justificado, na medida em que a comunidade na qual o direito se aplica, assume e exibe esta virtude: a integridade. Habermas observa que “com o conceito de ‘integridade’, Dworkin tenta mostrar que todas as ordens jurídicas modernas se referem à ideia do governo segundo as leis (do Estado de direito); elas garantem um inabalável ponto de referência para a hermenêutica crítica mesmo onde são tênues os traços da razão prática na história institucional” (Habermas: 1996, p. 215).

5. Convencionalismo: “o direito é o direito. Não é o que os juízes pensam (que é), mas sim o que realmente é. O trabalho dos juízes é aplica-lo e não modifica-lo para que este ajuste à sua própria ética ou convicção política” (Dworkin: 1997, p. 114).

O convencionalismo predominante na prática jurídica oferece uma compreensão mais elaborada: o direito resulta de determinadas convenções sociais especiais – convenções jurídicas -, as quais determinam que instituições têm poder para fazer o direito (e como), consistindo a prática jurídica no respeito e cumprimento destas convenções.

O problema vai adquirindo complexidade, à medida em que decidir sobre um dado conteúdo de uma convenção torna-se uma questão interpretativa; especialmente sobre o conteúdo das leis e dos precedentes, que são tipos abertos de convenções. Isto porque tal questão implica na interferência das convicções morais e políticas de quem tomará esta atitude interpretativa frente aos enunciados jurídicos, a propiciar uma gama de opiniões diversas.

O convencionalismo carece de coerência/consistência em princípio, como fonte de direitos. “O direito como integridade acredita que as pessoas têm direitos jurídicos – direitos que resultam das decisões políticas passadas das instituições e, portanto, autorizam a coerção – que vão além da extensão explícita das práticas políticas concebidas como convenções. O direito como integridade acredita que as pessoas têm direito a uma coerente (e baseada em princípios) extensão das decisões políticas passadas, mesmo quando os juízes discordem, profundamente, sobre o que isto significa” (Dworkin: 1997, p. 134).

6. Pragmatismo: prescinde das leis e dos precedentes como fontes exclusivas do direito, o qual resulta na consecução daquilo que a comunidade elegeu como melhor para si.

O significado desta promessa fica ao arbítrio da compreensão do juiz sobre a melhor comunidade.

Assim, aceitar o uso de uma lei de cuja integridade se duvida, significa, para um juiz pragmatista, estrategicamente, proteger a habilidade da legislação de coordenar o comportamento social.

O pragmatismo assume uma atitude cética frente às instituições jurídicas, negando-lhes o poder de justificação do uso ou da resistência à coerção estatal.

Para Dworkin, o pragmatismo é mais poderoso que o convencionalismo enquanto concepção interpretativa do direito, constituindo-se num bom desafiante do direito como integridade. Isto por ser maior o seu poder de persuasão, a medida que ele tenta o equilíbrio entre o prognóstico necessário para proteger as instituições da legislação e dos precedentes e a flexibilidade necessária aos juízes para melhorar o direito através do que eles fazem nos tribunais.

A estratégia do “como se” (as if) é o grande trunfo do pragmatismo.

7. Direito como integridade: a filosofia política liberal moderna, baseada nesta pedagogia das luzes, se sustenta sobre estes princípios: a equidade, a justiça e o procedural due process. Há, porém, um quarto princípio vislumbrado por Dworkin, sem lugar em teoria política alguma, mas presente na política cotidiana, ao qua ele denomina de integridade.

Desta forma, a integridade na legislação limita a ação dos legisladores ao expandir ou alterar o direito, enquanto na adjudication, ela exige que os juízes tratem o sistema jurídico como expressando e respeitando um conjunto coerente de princípios, e para este fim, portanto, interpretem, critica e construtivamente, o direito.

“A integridade torna-se um ideal político quando nós fazemos a mesma exigência do Estado ou da comunidade, considerados como sendo um agente moral; quando nós insistimos para que o Estado aja baseado em um conjunto coerente de princípios, mesmo quando seus cidadãos estão divididos sobre o que, realmente são, os exatos princípios de justiça e equidade” (Dworkin: 1997, p. 166).

Assim, a comunidade (ou o Estado) personificada como um agente moral confere legitimidade para o uso da força, na medida em que executantes e executados repartem o mesmo sentimento de respeito perante o todo, o qual é pautado pela virtude da política da integridade.

Há leis que, não obstante sejam coerentes em si, são incapazes de expressar um conjunto coerente de princípios como a equidade, a justiça e o devido processo legal. São leis, por assim dizer, não íntegras e que certamente, comprometem a democracia.

Sua proposta de uma legitimidade vertida da moralidade funda-se na ideia setecentista da fraternidade. Vale dizer, o direito de uma comunidade tratar seus membros, como tendo obrigações decorrentes das decisões coletivas da própria comunidade, deve ser achado na base da fraternidade e das suas concomitantes obrigações, e não no terreno dos contratos, dos deveres da justiça ou das obrigações do fair play.

Não obstante, o direito como integridade, enquanto possibilidade é, segundo Dworkin, a melhor concepção interpretativa do direito. Estão em si associadas a visão-para-o-passado do convencionalismo e a visão-para-o-futuro do pragmatismo, na perspectiva de uma lente que, embora postada no presente, focaliza o passado para a construção de uma imagem que se projeta para o futuro.

O direito como integridade, na esteira do pensamento liberal moderno, em que a razão é fundadora, aparece como a melhor concepção do direito e, ao mesmo tempo, como constitutiva de um projeto mais amplo, isto é, político e social. Especificamente, o direito como integridade pede aos juízes que assumam este ideal protestante de que o direito é estruturado sobre um coerente conjunto de princípios relativos à justiça, à equidade e ao procedural due process, obrigando o seu cumprimento. Estes princípios serão buscados na prática jurídica – no conjunto das decisões políticas coletivas – que os juízes interpretam para que, eles próprios, cheguem a uma decisão que, ao mesmo tempo, se ajuste e justifique tais práticas. No contexto da história política da sociedade, a decisão do juiz será um capítulo complementar que, naquele momento, a torna a melhor história possível; melhor no sentido do ponto de vista da moralidade política.

Dworkin é, em certo sentido, consciente da idealidade do seu direito como integridade e, não por acaso, tal empreitada é um trabalho para Hércules. Entretanto, ele alerta que “nós não devemos supor que as suas (de Hércules) respostas às várias questões com as quais ele se depara definem o direito como integridade como uma concepção geral do direito. São respostas que eu, agora, acho as melhores. Todavia, o direito como integridade consiste em uma possível abordagem; consiste antes em questões do que em respostas e, outros advogados e juízes que a aceitam dariam respostas diferentes das suas (das de Hércules) às questões que ele (o direito como integridade) coloca” (Dworkin: 1997, p. 239). Dworkin é igualmente consciente da dificuldade de se pensar este modelo para além do sistema jurídico anglo-americano e, mais do que isso, para além da estrutura política e social americana e de algumas outras democracias liberais.

A equidade é o fundamento da teoria da integridade, tornando-se efetiva através de procedimentos, moralmente justificados, de distribuição de poder. “Uma associação de princípio não é, automaticamente justa; sua concepção de igual respeito pode ser viciada ou pode violar os direitos dos cidadãos de outras nações (...). Mas o modelo principiológico satisfaz as condições de uma verdadeira comunidade melhor do que qualquer outro modelo de comunidade que possa ser adotado pelas pessoas que discordem sobre a justiça e a equidade” (Dworkin: 1997, p. 213-214).

Na esfera econômica, relativamente à distribuição das riquezas, a livre iniciativa limitar-se-ia pelos padrões comunitários. Isto significa que, não obstante a existência do mercado como determinante do modelo econômico (liberal), deveria este ser pautado antes pela igualdade e depois pela liberdade.


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