OS PRÉ-SOCRÁTICOS: Fragmentos, doxografia e comentários
1. Do mito à Filosofia: desde a própria Antiguidade confrontam-se duas linhas de interpretação: a dos orientalistas, que reivindicam para as antigas civilizações a criação de uma sabedoria que os gregos teriam depois apenas herdado e desenvolvido; e a dos ocidentalistas, que viam na Grécia o berço da filosofia e da ciência teórica.
Em nome de afirmações nacionais ou doutrinárias, passou-se a atribuir ao Criente a condição de fonte originária da tradição filosófica, que os gregos teriam apenas continuado e expandido.
O interesse pela mentalidade arcaica veio mostrar que o principal aspecto da questão da origem histórica da filosofia reside na compreensão de como se processa a passagem entre a mentalidade mito-poético (fazedora de mitos) e a mentalidade teorizante.
2. O nascimento da epopéia: as novas condições de vida das colônias e a nova mentalidade delas decorrente encontram sua primeira expressão através das epopéias: em poesia o homem grego canta o declínio das arcaicas formas de viver ou pensar, enquanto prepara o futuro advento da era científica e filosófica que a Grécia conhecerá a partir do século VI a.C.
Dos numerosos poemas, apenas dois se conservaram: a Ilíada e a Odisséia de Homero, escritos entre o século X e o VIII a.C.
3. Tempo de deuses e heróis: além de informar sobre a organização da polis arcaica, as epopéias homéricas são a primeira expressão documentada da visão mito-poética dos gregos. Com efeito, a Ilíada e a Odisséia apresentam-se marcadas pea presença constante de poderes superiores que interferem no desenrolar da luta entre gregos e troianos (tema da Ilíada) e nas aventuras de Ulisses ou Odisseu (tema da Odisséia).
Mesmo quado representam forças da natureza, os deuses homéricos revestem-se de forma humana; esse antropomorfismo atribui-lhes aspecto familiar e até certo ponto inteligível, afastando os terrores relativos a forças obscuras e incontroláveis.
A racionalização do divino conduz a uma religiosidade “exterior”, que mais convém ao público a que se dirigem as epopéias: à polis aristocrática. Essa religiosidade “apolínea” permanecerá como uma das linhas fundamentais da religião grega: a de sentido político, que servirá para justificar as tradições e instituições da cidade-Estado.
Os deuses são também animados por sentimentos e paixões humanas. Desse modo, à imagem da sociedade patriarcal, Zeus fundamenta na força sua preeminência e organiza, finalmente, o Olimpo como pai poderoso. O politeísmo homérico não exclui, portanto, a idéia de uma ação ordenada por parte dos deuses, chegando afinal a admitir certa unidade na ação divina.
4. Os homens e os divinos imortais: em Homero, a noção de virtude (areté), ainda não atenuada por seu posterior uso puramente moral, significaba o mais alto ideal cavalheiresco aliado a uma conduta cortesã e ao heroísmo guerreiro. Em geral, significa força e destreza dos guerreiros ou dos lutadores, valor heróico intimamente vinculado à força física. A virtude em Homero é, portanto, atributo dos nobres, os aristoi.
A essa concepção de uma dupla existência do homem – como corporeidade perceptível e como imagem a se manifestar nos sonhos – está ligada a interpretação homérica da morte e da alma (psiché). Desligada definitivamente do corpo (que se decompõe), a psiché passa então a integrar o sombrio cortejo de seres que povoam o reino de Hades.
Humanizando os deuses e afastando o temor dos mortos, as epopéias homéricas descrevem um mundo luminoso no qual os valores da vida presente são exaltados.
5. No começo, o Caos: com Hesíodo, dá-se a aparição do subjetivo na literatura.
Tomando como ponto de partida velhos mitos, que coordena e enriquece, Hesíodo traça uma genealogia sistemática das divindades. Nessa geneologia sistemática percebe-se o esboço de um pensamento racional sustentado pela exigência de causalidade, a abrir caminho para as posteriores cosmogonias filosóficas.
Adotando implicitamente o postulado de que tudo tem origem, Hesíodo mostra que primeiro teve origem o Caos – abismo sem fundo – e, em seguida, a Terra e o Amor (Eros), “criador de toda vida”. De Caos sairá a sombra, sob a forma de um par: Érebo e Noite. Da sombra sai, por sua vez, a luz sob a forma de outro par: Éter e Luz do Dia, ambos filhos da Noite. Terra dará nascimento ao céu, depois às montanhas e ao mar. Segue-se a apresentação dos filhos da luz, dos filhos da sombra e da descendência da Terra – até o momento do nascimento de Zeus, que triunfará sobre seu pai, Cronos.
6. No trabalho, a virtude: as duras condições de trabalho de sua gente sugerem assim a Hesíodo uma visão pessimista da humanidade, perseguida pela animosidade dos deuses. E a mulher deixa de ser exaltada, como na visão aristocrática de Homero, para ser caracterizada por esse camponês como mais uma boca para alimentar e a exigir sacrifícios.
Do mesmo modo que o mito de Prometeu ilustra a idéia de trabalho, o mito das idades ilustra a idéia de justiça: nenhum homem pode furtar-se à lei do trabalho, assim como nenhuma raça pode evitar a justiça. Com Hesíodo surge a noção de que a virtude (areté) é filha do esforço e a de qque o trabalho é o fundamento e a salvaguarda da justiça.
7. Os pré-socráticos: a acelerada dinâmica social das cidades-Estados jônicas corrói as antigas instituições e os valores arcaicos, fazendo emergir uma nova mentalidade, fruto da valorização das individualidades que se afirmam nas circunstâncias e iniciativas presentes.
Fruto da progressiva valorização da “medida humana” e da laicização da cultura efetuada pelos gregos, despontou, nas colônias da Ásia Menor, uma nova mentalidade, que coordenou racionalmente os dados da experiência sensível, buscando integrá-los numa visão compreensiva e globalizadora. Dentro desse espírito surgiram, na Jônia, as primeiras concepções científicas e filosóficas da cultura ocidental, propostas pela escola de Mileto.
O universo apresentava-se, assim, como um conjunto ou um “campo” no qual se contrapunham pares de opostos.
Segundo uma tradição, que remonta aos próprios gregos antigos, o primeiro filósofo teria sido Tales de Mileto. Para a história da filosofia, a importância de Tales advém, sobretudo de ter afirmado que a água era a origem de todas as coisas. A água seria a physis, que, no vocabulário da época, abrangia tanto a acepção de “fonte originária” quanto a de “processo de surgimento e de desenvolvimento”, correspondendo perfeitamente a “gênese”.
Para Anaximandro, o universo teria resultado de modificações ocorridas num princípio originário ou arché. Esse princípio seria o ápeiron, que se pode traduzir por infinito e/ou ilimitado. Certo é que, para Anaximandro, o ápeiron estaria animado por um movimento eterno, que ocasionaria a separação dos pares de opostos.
Anaxímenes afirmava que todas as coisas seriam produzidas através do duplo processo mecânico de rarefação e condensação do ar infinito.
Os doxógrafos são os escritores antigos que recolheram ou transcreveram as opiniões dos primeiros filósofos.
8. A salvação pela matemática: os órficos acreditavam na imortalidad da alma e na metempsicose, ou seja, na transmigração da alma através de vários corpos, a fim de efetivar sua purificação. A alma aspiraria, por sua própria natureza, a retornar a sua pátria celeste, às estrelas; mas, para se libertar do ciclo das reencarnações, o homem necessitava da ajuda de Dionisio, deus libertador que completava a libertação preparada pelas práticas catárticas.
Pitágoras de Samos, que se tornou figura legendária já na própria Antiguidade, realizou uma modificação fundamental na religiosidade órfica, transformando o sentido da “via de salvação”: no lugar de Dionisio colocou a matemática. Partindo de idéias órficas, o pitagorismo pressupunha uma identidade fundamental, de natureza divina, entre todos os seres; essa similitude profunda entre os vários existentes era sentida pelo homem sob a forma de um “acordo com a natureza”, que, sobretudo depois do pitagórico Filolau, será qualificada como uma “harmonia”, garantida pela presença do divino em tudo.
A purificação resultaria do trabalho intelectual, que descobre a estrutura numérica das coisas e torna, assim, a alma semelhante ao cosmo, em harmonia, proporção, beleza.
Os números não seriam, portanto – como virão a ser mais tarde -, meros símbolos a exprimir o valor das grandezas: para os pitagóricos, eles são reais, são a própria “alma das coisas”, são entidades corpóreas constituídas pelas unidades contíguas.
O número par pode ser visto como a expressão aritmo-geométrica da alteridade, enqunto o ímpar seria a própria manifestação básica, na matemática, da identidade. A partir desses fundamentos matemáticos, os pitagóricos podem então conceber todo o universo como um campo em que se contrapõem o Mesmo e o Outro.
9. A unidade do divino: o binômio unidade/pluralidade deslocou-se da esfera cosmológica para reaparecer sob a forma de oposição entre a verdade única e multiplicidade de opiniões. Essa encruzilhada do pensamento – que fecundou toda a investigação filosófica posterior – manifesta-se em Heráclito de Éfeso, mas foi sobretudo marcada pela escola de Eléia.
Durante muito tempo pensou-se que Xenófanes teria escrito um poem (Sobre a Natureza), expondo idéias filosóficas próprias. Além disso, teria deixado – e essa seria justamente a parte mais importante de sua obra – poemas satíricos, os silloi, criticando, em nome das novas idéias filosóficas, a mentalidade vulgar, particularmente quanto à concepção do divino.
10. O que é – é o que é: O poema de Parmênides divide-se em três partes: o proêmio, rico em metáforas, descreve uma experiência de ascese e de revelação; a primeira parte apresenta o conteúdo principal dessa revelação mostrando o que seria a “via da verdade”; a segunda parte caracteriza a “via da opinião”.
“O que é”, sendo “o que é”, terá de ser único: além do “o que é” apenas poderia existir, diferente dele, “o que não é” – o que seria absurdo, pois significaria atribuir experiência ao não-ser, impensável e indizível. Pelo mesmo motivo – simples desdobramento do princípio da identidade -, o ser tem de ser eterno, imóvel, finito, imutável, pleno, contínuo, homogêneo e indivisível.
Aos adversários da escola responde Zenão, através de argumentos que constituem verdadeiras aporias (caminhos sem saída) e procuram mostrar que as teses dos opositores do eleatismo, como os pitagóricos, ocultavam contradições internas insuperáveis, além de estarem também em desacordo com a experiência sensível. Zenão sistematizou o método de demonstração “pelo absurdo” e foi considerado por Aristóteles o inventor da dialética, em sua acepção erística, de argumentação combativa que parte das premissas do próprio adversário e delas extrai conclusões insustentáveis.
11. O fogo eternamente vivo: “este mundo, que é o mesmo para todos, nenhum dos deuses ou dos homens o fez. Mas foi sempre, é e será um fogo eternamente vivo, que se acende com emdida e se apaga com medida” (Heráclito de Éfeso, que já na Antiguidade tornou-se conhecido como “o Obscuro”).
A apresentação aforismática de seu pensamento e o estilo intencionalmente sibiliano fazem de Heráclito um dos pensadores pré-socráticos de mais difícil interpretação. Se há aforismo de Heráclito que não manifestam obscuridade são justamente os de cunho crítico.
12. A unidade dos opostos: o que diz o Logos, do qual Heráclito se faz o anunciador e em nome do qual condena o torpor da multidão ou a polimatia dos supostos sábios, é isto: a unidade fundamental de todas as coisas. A Razão (Logos) consistiria precisamente na unidade profunda que as oposições aparentes ocultam e sugerem: os contrários, em todos os níveis da realidade, seriam aspectos inerentes a essa unidade.
As transformações que integram o fluxo universal não significam desgoverno e desordem; pelo contrário, o Logos-Fogo é também Razão universal e, por isso, impõe medida ao fluxo.
Mas o pessimismo advém, sobretudo, de reconhecer o torpor em que vive a maioria dos homens, ignorantes da lei universal que tudo rege. Por isso, o discurso (logos) do filosófo, embora pretendendo ser a manifestação da Razão universal (Logos), exprime-se como um solitário monologos.
13. As quatro raízes: concebido à imagem da polis democrática, o cosmo pode então ser explicado como o jogo regulado de “iguais”: as quatro raízes de Empédocles, o múltiplo contido que racionaliza e explica a multiplicidade inumerável das coisas móveis percebidas. Para ele, a aletheia não é mais a revelação de uma verdade absoluta, porém uma verdade proporcional à “medida humana”. Isso significa que a evidência procurada não é a do intelecto puro: é a exigência de clareza racional, porém aplicada aos dados fornecidos pelos sentidos.
A conciliação entre razão e sentidos, proposta por Empédocles, conduz à substituição do monismo corporalista pelo pluralismo: o universo pode ser entendido então como o resultado de quatro raízes – a água, o ar, a terra, o fogo. Essas raízes estão governadas pela isonomia: são “iguais”, nenhuma é mais importante, nenhuma mais primitiva, todas são eternas e imutáveis. Nem há mudança substancial: as raízes permanecem idênticas a si mesmas. A diversidade das coisas delas resultantes advém de sua mistura em diferentes proporções.
14. O Amor e o Ódio: para resolver esse impasse gerado pelo eleatismo e conciliar democraticamente as duas exigências, concendendo a cada qual uma satisfação (limitada) de suas reivindicações, Empédocles apela para mais dois princípios cosmogônicos: o Amor (Philia) e o Ódio (Neikos). O primeiro age como força de atração entre os dessemelhantes (as raízes), enquanto o Ódio exerce ação contrária, afasta as raízes. Empédocles estabelece paridade entre Amor e Ódio e as quatro raízes: são também corpóreos (são “fluidos-forças”) e têm a mesma “idade” das raízes (o que exclui qualquer preeminência por anterioridade).
15. Em tudo uma porção de tudo: Anaxágoras escreveu, em prosa, uma obra que tentava, como já o fizera Empédocles, conciliar a doutrina eleática de uma substância corpórea imutável com a existência de um mundo que apresenta a aparência do nascimento e da destruição.
O universo atual constitui-se, segundo Anaxágoras, a partir de um todo originário no qual todas as coisas estavam juntas e “nenhuma delas podia ser distinguida por causa de sua pequenez”. O movimento e a diferenciação só surgem nesse conjunto aparentemente homogêneo devido à interferência do Espírito (Nous). Mas, na verdade, o Nous é uma corporeidade sutil e sua ação é de natureza mecânica: move e separa os opostos (frio-quente, pesado-leve etc.) que inicialmente estavam juntos. Devido a essa ação é que surgem os seres diferenciados.
16. Átomos, vazio, movimento: partindo de colocações do eleatismo – particularmente de que a afirmação do movimento pressupõe o não-ser -, Leucipo e Demócrito teriam concluído que exatamente porque o movimento existe (como mostram os sentidos), o não-ser (corpóreo) existe. Afirma-se, assim, pela primeira vez, a existência do vazio. E nesse vazio é que se moveriam os átomos, partículas corpóreas, insecáveis (indivisíveis fisicamente, emvora divisíveis matematicamente). Os átomos apresentavam ainda outras características: seriam plenos (sem vazio interno); em número infinito; invisíveis (devido à pequenez); móveis por si mesmos; sem nenhuma distinção qualitativa; apenas distintos por atributos geométricos. Todo universo estaria, portanto, constituído por dois princípios: o contínuo incorpóreo e infinito (o vazio), e o descontínuo corpóreo (os átomos).
17. A ética do mecaniscismo: contemporâneo de Sócrates, Demócrito também busca uma resposta para o relativismo dos sofistas, particularmente para o de seu conterrâneo Protágoras, que afirmava que “o homem é a medida de todas as coisas”. A defesa de um conhecimento da physis e independente da “medida humana” é feita, por Demócrito, mediante a distinção entre dois tipos de conhecimento: o “bastardo”, que seria o comnhecimento sensível, a exprimir na verdade as disposições do sujeito antes que a realidade objetiva; e o conhecimento “legítimo”, que seria a compreensão racional da organização interna das coisas, ou seja, a compreensão de que a physis do universo fragmentava-se na multidão de átomos corpóreos que se moviam no vazio infinito.
Quanto à ética, Demócrito, do mesmo modo que Sócrates, considera a “ignorância do melhor” como a causa do erro. Em Demócrito isso, porém, não acontece: parece simplesmente justapor a uma física estrititamente mecanicista uma ética que pressupõe valores norteadores da conduta humana.
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