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Direito e Sociedade - Texto- O ENFOQUE SOCIOLÓGICO DA TEORIA E PRÁTICA DO DIREITO

O ENFOQUE SOCIOLÓGICO DA TEORIA E PRÁTICA DO DIREITO – Niklas Luhmann
Para a unidade da nova disciplina, teria sido mais conveniente definir seu objeto também como uma unidade, sem levar em conta todas as disciplinas que já tratavam do pensamento e atuação humanos. Desta forma surgiu, a “grosso modo”, um novo conceito de sociedade que não continuava a antiga tradição européia de uma societas civilis, tampouco o conceito de sociedade do século XIX, vinculado à economia. Isto teve de conduzir, conseqüentemente, a que todo o conhecimento, desde a escolástica até a teoria da relatividade, desde as interpretações da trindade até a genética de Mendel, e incluindo a própria sociologia como produto da sociedade, se colocassem nas mãos da sociologia.
A sociologia tem que saber mais, de alguma maneira, que os próprios atores; seja por que relativize seu conhecimento como cultura, reduzindo-o a um fator, entre os outros determinadores de ação; seja por que se baseie em uma suspeita geral referente à motivação, não assumindo a convicção do ator com respeito ao sentido de sua atuação, mas sim racionalizando seu sentido, como efeito de socialização, de privações ou de necessidades de compensação.
Tanto o sistema jurídico como o científico, e, dentro deste último, a disciplina específica da sociologia, hão de ser considerados, pois, como sistemas auto-referentes. Cada um destes sistemas constitui, por si mesmos, tudo aquilo que funciona como uma unidade para o sistema. Isto não se refere apenas à unidade do sistema, as suas estruturas e processos, mas também aos elementos que o constituem (autopoiesis). Para esta contínua produção e reprodução de unidade, são requeridas distinções que permitam indicar o que será utilizado como unidade e o que não será. Tão logo a distinção mesma seja a indicadora, quer dizer, converta-se em objeto da mesma operação distintiva, surge um paradoxo. A unidade, que há de ser determinada somente mediante uma distinção, não pode distinguir-se da própria distinção. Isto equivaleria a pedir ao direito (ou não direito) a distinguir entre o que é direito e o que não é. Não obstante, é precisamente neste paradoxo que se baseiam todos os sistemas auto-referentes, não o convertendo, porém, em objeto de suas próprias operações. Summum ius, summa uniuria, poder-se-ia exclamar como grito desesperado – porém, precisamente no sentido de que este princípio não pode ser introduzido no sistema como diretiva e, apesar disto, o sistema se baseia exatamente nele. O paradoxo não é nenhuma contradição e, por isso, tampouco a promessa de uma síntese da “dialética” conduz mais longe. O paradoxo não afirma: jurídico igual a antijurídico, mas sim, jurídico por causa de antijurídico. Este problema escapa a todo nivelamento lógico. Pode, entretanto, ser desparadoxalizado por meio da codificação sistemática. Através da aceitação de um código binário (jurídico/antijurídico), o sistema obriga a si próprio a essa bifurcação, e somente reconhece as operações como pertencentes ao sistema, se elas obedecem a esta lei.
Se os sistemas se baseiam em uma diferença codificada (verdadeiro/falso, jurídico/antijurídico, ter/não ter), toda auto-referência teria lugar dentro destes códigos. Opera dentro deles como relação de negação, que excepciona terceiras possibilidades e contradições; precisamente este procedimento que estabelece o código não pode ser aplicado à unidade do próprio código. A não ser: por um observador.
A observação do paradoxo conduz a sociologia ao problema de como ela própria, enquanto ciência, poderia desparadoxalizar seu próprio paradoxo: o paradoxo de que existem teses que são falsas por que são verdadeiras.
O que Kelsen já encontrou feito é a resposta de George Jellinek e Max Weber: a sociologia se ocupa da convicção fática da validez (legítima) das normas.
Portanto, uma expectativa tem uma pretensão normativa, se sua comunicação promete que dita expectativa será mantida mesmo em caso de desilusão. Isto é somente a manifestação de uma intenção subjetiva. O direito se produz, então, pela seleção e generalização de semelhantes pretensões normativas. Estas são válidas ao serem aceitas por outros, ao perdurarem, ou seja, quando podem ser repetidas em outros casos e formalizadas de maneira geral e relativamente livre do contexto. A semântica do “dever” simboliza o resultado de semelhante processo de generalização.
Autopoiesis significa que um sistema reproduz os elementos de que é constituído, em uma ordem hermético-recursiva, por meio de seus próprios elementos. Neste sentido, a comunicação autopoiética do direito transmite, tanto na vida cotidiana como na prática organizada da decisão, a qualidade normativa da comunicação para a comunicação, e reproduz, com isso, a si mesma. Isto pode ser realizado segundo o código do direito, tanto através do símbolo comunicativo “jurídico”, como também por mediação do símbolo comunicativo “antijurídico” (mas não, por exemplo, através do símbolo comunicativo “útil”).
O direito não pode importar as normas jurídicas de um ambiente social (não existe nenhum direito “natural”), tampouco pode dar normas a este ambiente (as normas jurídicas não podem valer como direito fora do direito). A normatividade é o modo interno de trabalhar do direito, e sua função social consiste, precisamente, em que cumpra a missão de disponibilidade e modificação do direito para a sociedade. Toda orientação do direito com relação ao seu ambiente utiliza a cognição. Quer dizer, baseia-se em expectativas que se modificam em caso de desilusão. Em total contraposição com a atividade normativa, a atitude cognoscitiva está disposta a aprender.
Abertura e não abertura não supõem nenhuma contradição, já que não estão definidas no sentido de uma mútua relação excludente; sua contradição, porém, situa o sistema sob exigências específicas de anulação de seu paradoxo.
Para a recombinação contínua de reprodução fechada e orientação ambiental aberta, ou seja, de modelos normativos e cognoscitivos de expectativa, o sistema jurídico dispõe de duas formas de comunicação: decisões e argumentos. Decisões juridicamente vinculantes produzem-se quando o sistema jurídico utiliza a capacidade do sistema político de impor decisões coletivamente vinculantes, mesmo em caso de resistência. O direito é válido, então, em razão de decisões que estabelecem sua validade. O próprio sistema jurídico há de acreditar nesta razão de validade. O direito positivo é válido, por que poderia ser modificado por uma decisão. Portanto, a validade se baseia na possibilidade de sua negação.
A argumentação, mediante a qual se delimitam os espaços de decisão (qualquer que seja o seu nível) e se reproduzem sem decisão os ônus da decisão, coloca problemas sistêmicos de outra índole.
A tradição da antiguidade oferecia, ademais, a possibilidade de introduzir uma espécie de direito amortizador, por detrás do direito propriamente dito, com denominações como aequitas, equidade.
Kant sistematiza esta idéia. Desde então, tem-se aceitado a concepção de que a violência, sem ser juridicamente qualificável em sua origem, conduz, inobstante, ao estado legal.
Não obstante, a violência é um contínuo fenômeno secundário do direito, ainda que externo.
Ao aumentar a complexidade, o direito pode desenvolver técnicas para correlacionar casos similares, reencontrar decisões prévias semelhantes, armazenar tópica ou conceitualmente experiências convincentes; sobretudo, devido à formação das novas gerações, é capaz de desenvolver fórmulas de aprendizagem e dogmática mais sistematizadas, que podem englobar, cada vez mais, casos distintos num princípio.



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