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Direito e Sociedade - Texto -DO PLURALISMO JURÍDICO À MISCELÂNEA SOCIAL

DO PLURALISMO JURÍDICO À MISCELÂNEA SOCIAL: O problema da falta de identidade da(s) esfera(s) de juridicidade na modernidade periférica e suas implicações na América Latina – Marcelo Neves
1.      Introdução: o pluralismo jurídico surge exatamente como contestação da pretensão exclusivista do Estado. Constrói-se a concepção da concomitância de ordens jurídicas no mesmo espaço-tempo e, a partir daí, nega-se a pretensão de “onipotência” do Estado.
Quatro são as tendências básicas do pluralismo jurídico: a. o pluralismo institucionalista em oposição ao monismo formalista; b. o pluralismo antropológico em contraposição ao imperialismo metropolitano; c. o pluralismo sociológico contra o legalismo estatal; d. o pluralismo pós-moderno.
2.      As perspectivas pluralistas: os monistas argumentavam a partir da norma fundamental, da qual resultaria a unidade do sistema jurídico.
O pluralismo institucionalista nega a supra-infra-ordenação entre ordem jurídica do Estado e ordens não estatais, e sustenta a tese de que se trata de ordenamentos coordenados. Contra a conexão formal internormativa fundadora do monismo, as ordens plurais distinguir-se-iam, em última análise, por seus âmbitos específicos de vigência, concomitantes no mesmo espaço.
A discussão temática dirige-se em torno da pluralidade de “fontes” de produção social do Direito, que seriam bem mais amplas do que o poder do Estado. Desenvolve-se, assim, um antilegalismo contrário à pretensão exclusivista do direito positivo estatal.
As “formas jurídicas alternativas” surgiriam exatamente como reação a problemas de heterorreferência ou adequação do Direito positivo estatal, em decorrência do excesso de legalismo juridificante.
A tendência mais recente do pluralismo jurídico vai ser desenvolvida no âmbito das teorias pós-modernas do Direito. Parte-se da negação da possibilidade de universalização ou generalização do discurso jurídico no espaço da pós-modernidade.
Parte-se da concepção de que o sistema jurídico autopoiético constitui-se do entrelaçamento entre os componentes sistêmicos, a saber, procedimento jurídico (processo), ato jurídico (elemento), norma jurídica (estrutura) e dogmática jurídica (identidade). No caso do Direito parcialmente autônomo, haveria a auto-referencial constituição dos respectivos componentes sistêmicos, não surgindo, porém, o enlace hipercíclico entre eles. Ou seja, haveria (re)produção auto-referencial dos atos jurídicos entre si, das normas entre si, dos procedimentos entre si, dos argumentos e proposições dogmáticas entre si, mas esses diversos componentes sistêmicos não se entrelaçariam num hiperciclo autopoiético. Por fim, teríamos o direito socialmente difuso, no qual os componentes sistêmicos seriam produzidos sem diferenciação jurídica, ou seja, simplesmente como conflito (processo), ação (elemento), norma social (estrutura) e imagem do mundo (identidade).
3.      Do pluralismo jurídico à miscelânea social: é exatamente esse problema do intrincamento bloqueante e destrutivo entre a juridicidade estatal e os “Direitos socialmente difusos”, que impede a recepção do modelo pluralista euro-norte-americano à situação jurídica da América Latina. A nível de concreção jurídica, não se delineiam, em nossa realidade de países tipicamente “periféricos”, as fronteiras operacionais do campo do Direito positivo estatal em face de pretensas áreas de juridicidade extra-estatal. As relações reciprocamente destrutivas significam indistinção operacional das diversas esferas de juridicidade. Surge, assim, uma miscelânea de códigos e critério jurídicos.
Entretanto, a questão torna-se mais complicada quando consideramos os diversos sistemas sociais, especialmente a economia e o poder. Observa-se que os códigos e critérios do ter e do poder não apenas atuam como condições “infra-estruturais” ou meio-ambientais de reprodução do sistema jurídico. Antes eles atuam como injunções bloqueantes e destrutivas do processo de reprodução autônoma e de construção da identidade do(s) Direito(s). Daí resulta uma insuficiente desintricação operacional das esferas econômica, política e jurídica, entre outras, de tal maneira que a situação não se apresenta simplesmente como miscelânea jurídica, mas primariamente como uma miscelânea social de códigos e critérios de conduta.
4.      Modernidade periférica como modernidade negativa: parto da constatação de que o advento da sociedade moderna está estreitamente vinculado a uma profunda desigualdade econômica no desenvolvimento interregional, trazendo conseqüências significativas na reprodução de todos os sistemas sociais, principalmente no político e no jurídico.
A modernidade periférica pode ser caracterizada como “modernidade negativa”, partindo-se tanto da perspectiva sistêmica quanto do modelo com pretensão ético-procedimental.
De acordo com a teoria dos sistemas, a sociedade moderna resultaria da hiper-complexificação social vinculada à diferenciação funcional das esferas do agir e do vivenciar. Implicaria, portanto, o desaparecimento de uma moral material globalizante, válida para todas as conexões de comunicação, e o surgimento de sistemas sociais operacionalmente autônomos, reproduzidos com base nos seus próprios códigos e critérios, embora condicionados pelo seu meio ambiente circundante (autopoiese). Na modernidade periférica, à hipercomplexificação social e à superação do “moralismo” fundamentador da diferenciação hierárquica, não se seguiu a construção de sistemas sociais que, embora interpenetráveis e mesmo interferentes, constrói-se autonomamente no seu topos específico. Portanto, a modernidade não se constrói positivamente, como superação da tradição através do surgimento de sistemas autônomos de ação, mas apenas negativamente, como hipercomplexificação desagregadora do moralismo hierárquico tradicional.
Conforme a concepção ético-procedimental proposta por Habermas, a modernidade resultaria da evolução da consciência moral no sentido da superação das estruturas pré-convencionais e convencionais e o advento de uma moral pós-convencional. Nessa perspectiva, a modernidade exigiria positivamente a construção de uma “esfera pública”, topos democrático discursivamente autônomo com relação aos “meios” sistêmicos “poder” e “dinheiro”. Tal pretensão “normativa”, embora encontre indícios na “modernidade central”, não parece encontrar o mínimo de fundamento nas relações sociais da “modernidade periférica”. Aqui, a modernidade constrói-se negativamente como desagregação da consciência moral convencional (e inclusive da pré-convencional), sem que daí resulte a estruturação da consciência moral pós-convencional e, muito menos, a autonomia de uma “esfera pública”.
5.      A falta de autonomia-identidade da(s) esfera(s) de juridicidade na modernidade periférica latino-americana: a questão da autonomia do Direito vem sendo tratada de forma mais radical pela teoria sistêmica. Nessa perspectiva, a positividade do direito é definida como “autodeterminante” do Direito, ou seja, autonomia operacional do sistema jurídico em relação às determinações do seu “meio-ambiente”.
O direito é visto como “um sistema normativo fechado, mas cognitivamente aberto”. Ao mesmo tempo que o direito positivo fatorializaria a auto-referência através de conceitos, ele construiria sua heterorreferência através da assimilação de interesses.
A vigência jurídica das expectativas normativas não é determinada imediatamente por interesses econômicos, critérios políticos, representações éticas, nem mesmo por proposições científicas, ela depende de processos seletivos de filtragem conceitual no interior do sistema jurídico.
Habermas reconhece que as fronteiras entre Direito e Moral existem, considerando que a racionalidade procedimental do discurso moral não regulado juridicamente é incompleta, eis que inexiste um terceiro encarregado de decidir as questões entre as partes. Mas, embora não negue a autonomia do sistema jurídico, atribui-lhe uma fundamentação ética: “um sistema jurídico adquire autonomia não apenas para si sozinho. Ele é autônomo apenas na medida em que os procedimentos institucionalizados para a legislação e jurisdição garantem formação imparcial de julgamento e vontade, e, por esse caminho, proporcionam a uma racionalidade ético-procedimental ingresso igualmente no Direito e na Política. Não há autonomia do Direito sem democracia real”.
A tendência é a instrumentalização política do Direito, seja por meio da mutação casuística das estruturas normativas, principalmente durante os períodos autoritários, ou através do jogo de interesses particularistas bloqueadores do processo de concretização normativa. Nesse contexto, a autonomia privada (“direitos humanos”) e a autonomia pública (“soberania popular”), embora, em regra, declaradas no texto constitucional, são rejeitadas mediante os mecanismos de desestruturação política do processo concretizador da Constituição.
O intrincamento do(s) código(s) jurídico(s) com outros códigos sociais atua autodestrutivamente e heterodestrutivamente. O problema não reside, primariamente, na falta de abertura cognitiva (heterorreferência ou adaptação), mas sim no insuficiente fechamento operacional (auto-referência), que obstaculiza a construção da própria identidade do sistema jurídico.
E são exatamente as incongruências autodestrutivas das expectativas normativas e as incompatibilidades heterodestrutivas de dissensos entre campos de ação que impedem a construção da identidade de esfera(s) de juridicidade na modernidade periférica latino-americana.
6.      Equívocos do pluralismo na abordagem da realidade jurídica latino-americana: o pluralismo antropológico é utilizado quando, apesar de reconhecidas as diversidades, o pluralismo existente na relação entre Direito(s) primitivo(s) ou tradicional(is) nativo(s) e Direito moderno do colonizador é comparado positivamente com o relacionamento entre a ordem jurídica estatal e os modelos de resolução de conflitos desenvolvidos pelos favelados. No exemplo da ordem dos favelados, a construção e desenvolvimento de mecanismos extra-estatais de solução ou neutralização de conflitos de interesses importam formas instáveis e difusas de reação à fala de acesso aos benefícios e vantagens do sistema jurídico estatal, incapaz de generalização includente de toda a população.
Em síntese, sustentava-se que me tais experiências desenvolviam-se processos sociais de pluralismo jurídico como “alternativa” ao legalismo.
O fato indiscutível de que na modernidade periférica latino-americana muitas “unidades sociais” dispõem difusamente de diferentes códigos jurídicos (Sousa Santos usou a expressão “privatização possessiva do direito”) não implica, a rigor, alternativas pluralistas em relação ao funcionamento legalista do Direito estatal, mas antes mecanismos instáveis e difusos de reação à ausência da legalidade. Não se trata propriamente da construção de uma identidade jurídica tópica em face da insatisfação com a rigidez da reprodução consistente da identidade do sistema legal, ao qual se teria acesso.
Em síntese, ao contrário de alternatividade pluralista ao legalismo, trata-se de intrincamento entre ausência de legalidade e “estratégias de sobrevivência” em relação ao campo jurídico. Rabanal, em perspectiva psicossocial, interpreta o problema a partir de “uma contradição fundamental: a violação da legalidade com o fim de alcançar a legalidade”.
Os modelos de resolução ou neutralização de conflitos, num contexto de “marginalizações” e privilégios, produzem, então, uma extrema insegurança destrutiva, cuja manutenção está vinculada, contraditoriamente, à conservação de privilégios e, portanto, é prejudicial sobretudo aos socialmente “deficientes”.
7.      Entre subintegração e sobreintegração. Implicações constitucionais: do lado dos subintegrados, generalizam-se as relações concretas em que não têm acesso aos benefícios do ordenamento jurídico, mas dependem de suas prescrições impositivas. Portanto, os subcidadãos não estão excluídos. Embora lhes faltem as condições reais de exercer os direitos fundamentais constitucionalmente declarados, não estão liberados dos deveres e responsabilidades impostas pelo aparelho coercitivo estatal, submetendo-se radicalmente às suas estruturas punitivas.
A subintegração das massas é inseparável da sobreintegração dos grupos privilegiados, que, principalmente com apoio da burocracia estatal, desenvolvem suas ações bloqueantes da reprodução do Direito. É verdade que os sobrecidadãos utilizam regularmente o texto constitucional democrático – em princípio, desde que isso seja favorável aos seus interesses e/ou para proteção da “ordem social”. Tendencialmente, porém, a Constituição é posta de lado na medida em que impõe limites à sua esfera de ação política e econômica. Ela não atua, pois, como horizonte do agir e vivenciar jurídico-político dos “donos do poder”, mas sim como uma oferta que, conforme a eventual constelação de interesses, será usada, desusada e abusada por eles.
8.      O mito da funcionalidade: por um lado, trata-se de um funcionalismo ingênuo, que confunde funcionalidade com a existência. Não se observa que a existência de estruturas normativas não significa que elas exerçam as funções correspondentes. Por outro lado, parte-se de um modelo simplificado de sociedade, segundo o qual a função é uma relação globalizante, abrangendo linearmente as referências de cada esfera de ação consigo mesma, com o todo e as partes da sociedade.
Portanto, a diversidade de relações sistêmicas (função, prestação e reflexão) e a complexidade de variáveis sociais, possibilita que algo seja considerado funcional a partir de uma esfera de ações e expectativas seja avaliado como disfuncional ou não-funcional em outros campos do agir e do vivenciar e vice-versa.
Dessa maneira, quanto mais as expectativas normativas afastam-se difusa e incongruentemente do modelo jurídico constitucional, tanto menor o grau de funcionalidade das respectivas estruturas normativas.
9.      Pela superação do dilema “monismo versus pluralismo”: de um lado, os monistas não compreendem que a diversidade contraditória de expectativas e interesses não se compatibiliza com um centro de produção jurídica hermeticamente fechado às demandas sociais.
De outro lado, os pluralistas não retiram de conceitos como “vínculo estrutural”, “direito intersistêmico de colisão” e “compatibilização do dissenso entre as esferas tópicas de juridicidade” as conseqüências teóricas devidas, deixando de interpretá-los como mecanismos construtores da unidade na pluralidade. Desconhecem que se trata de estruturas unitária que atuam como condição de possibilidade da pluralidade jurídica.
A rigor, o Direito da sociedade moderna, marcada pela diversidade contraditória de expectativas e interesses (complexidade), só constrói sua identidade-autonomia enquanto envolve unidade e pluralidade. E isso não é simplesmente um postulado racional-normativo (contrafático), no sentido da “unidade da razão na multiplicidade de suas vozes”, mas antes uma exigência empírico-funcional.
Ou seja, a identidade/autonomia do sistema jurídico, ao implicar generalização includente do código “lícito/ilícito”, é indissociável da noção de cidadania. E isso também no plano de um pretenso Direito Mundial fundado na semântica dos direitos humanos.
Em suma: unidade generalizada do código “lícito/ilícito” (--> legalidade, cidadania) e pluralidade de programas e critérios normativos (--> democratização jurídica) são condições indissociáveis da identidade/autonomia e da funcionalidade do sistema jurídico na sociedade moderna.

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