Se por um lado propendíamos para a solução ética, repugnando-nos que o instituto da personalidade jurídica fosse usado para fins tão condenáveis, por outro lado estávamos condicionados pela lição corrente, de que o direito da personalidade jurídica é absoluto, não se podendo superar a distinção entre ela e seus componentes, nem negar a sua autonomia patrimonial.
A doutrina desenvolvida pelos tribunais norte-americanos visa a impedir a fraude ou abuso através do uso da personalidade jurídica, e é conhecida pela designação disregard of legal entity ou também pela lifting the corporate veil. Se traduzíssemos as expressões referidas como desconsideração da personalidade jurídica, ou ainda, como desestimação da personalidade jurídica.
A jurisprudência há de enfrentar-se continuamente com os casos extremos em que resulta necessário averiguar quando pode prescindir-se da estrutura formal da pessoa jurídica para que a decisão penetre até o seu próprio substrato e afete especialmente a seus membros.
O mais curioso é que a disregard doctrine não visa a anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar no caso concreto dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem.
Quando o conceito de pessoa jurídica (corporate entity) se emprega para defraudar os credores, para subtrair-se a uma obrigação existente, para desviar a aplicação de uma lei, para construir ou conservar um monopólio ou para proteger velhacos ou delinqüentes, os tribunais poderão prescindir que a sociedade é um conjunto de homens que participam ativamente de tais atos e farão justiça entre pessoas reais. Hoje os tribunais norte-americanos alargaram ainda mais o conceito, aplicando a doutrina quando a consideração da pessoa jurídica levar a um resultado injusto.
Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos.
Cunha Gonçalves ensina que as pessoas jurídicas são reais, como um contrato ou testamento. Daí a definição que o civilista lusitano nos empresta, de que as pessoas jurídicas são associações ou instituições (fundações) formadas para a realização dum fim e reconhecidas pela ordem jurídica como sujeitos de direitos.
Artigo 350 do Código Comercial: os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívida da sociedade, senão depois de executados todos os bens sociais.
Artigo 942, XII do CPC: não poderão ser absolutamente penhorados: os fundos sociais, pelas dívidas do sócio, não compreendendo a isenção os lucros líquidos verificados em balanço.
Mas todos esses conceitos e preconceitos levaram o pensamento jurídico a conceber, sobretudo em nosso país, a personalidade jurídica como um véu impenetrável.
Ora, a doutrina da desconsideração nega precisamente o absolutismo do direito da personalidade jurídica.
A personalidade jurídica passa a ser considerada doutrinariamente um direito relativo, permitindo ao juiz penetrar o véu da personalidade para coibir os abusos ou condenar a fraude, através de seu uso.
A finalidade social é o mais alto atributo do Direito.
Ao jurista deve caber uma função verdadeiramente criadora, procurando os motivos profundos e o sentido real do mundo em que vivemos, buscando o significado último das normas, com vista à sua adaptação a uma realidade em permanente evolução; o jurista não pode nem deve limitar-se à mera exegese de um direito objetivo que aspira à perfeição e à infalibilidade, mas deve assumir uma função propulsiva, capaz de tornar o direito positivo sempre mais conforme às necessidades concretas da sociedade.
Assim, o sujeito não exercitará seus direitos egoisticamente, mas tendo em vista a função deles, a finalidade social que objetivam.
O titular de um direito que, entre vários meios de realizá-lo, escolhe precisamente o que, sendo mais danoso para outrem, não é o mais útil para si, ou mais adequado ao espírito da instituição, comete, sem dúvida, um ato abusivo, atentando contra a justa medida dos interesses em conflito e contra o equilíbrio das relações jurídicas.
O abuso evidente de um direito não encontra proteção legal.
Considera-se ato fraudulento, como o conceituam os revisores do Projeto de Código de Obrigações, no artigo 67, o negócio jurídico tramado para prejudicar credores, em benefício do declarante ou de terceiro. No abuso de direito não existe, propriamente, trama contra o direito de credor, mas surge do inadequado uso de um direito, mesmo que seja estranho ao agente o propósito de prejudicar o direito de outrem.
Com efeito, o que se pretende com a doutrina do disregard doctrine, não é a anulação da personalidade jurídica em toda a sua extensão, mas apenas a declaração de sua ineficácia para determinado efeito, em caso concreto, em virtude de o uso legítimo da personalidade ter sido desviado de sua legítima finalidade (abuso de direito) ou para prejudicar credores ou violar a lei (fraude).
Na análise feita pelos autores que se dedicam ao estudo da disregard doctrine o maior campo de sua aplicação se situa no das famigeradas sociedades de um sócio apenas, ou das sociedades fictícias como também são conhecidas.
Malgrado a reforma da decisão que desconsiderara a personalidade jurídica da company, para alcançar os bens nela acobertados, essa técnica jurisprudencial teve sucesso acentuado na América do Norte, o que tornou a disregard doctrine, mais uma construção jurisprudencial norte-americana do que britânica.
É uma constante nos julgamentos dos tribunais americanos, como nos germânicos, que o levantamento do véu da personalidade jurídica, pela aplicação da disregard doctrine, é feito com extrema cautela e em casos excepcionais. Não se transformou, nas várias décadas em que tem sido usada, numa panacéia, aplicável ao talante de paixões, dúvidas e interesses momentâneos e menos graves.
A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica, para impedir a fraude e o abuso do direito, está, como vimos, consagrada na jurisprudência de diversos países, cuja cultura jurídica sempre influiu e inspirou os nossos juristas.
Quando a Consolidação das Leis do Trabalho, por exemplo, no artigo 3º, concebe como uma única entidade econômica a união de empresas, ou entre a empresa mater e suas afiliadas, para os efeitos do direito social, nada mais está admitindo senão a aplicação da doutrina, pois despreza e penetra o véu que as encobre e individualiza, desconsiderando a personalidade independente de cada uma das subsidiárias.
Mas como as sociedades não têm condições de responder criminalmente por seus atos, a não ser pela penalidade da dissolução como quando são ilícitos os seus fins (artigo 167, do decreto-lei n. 2.627, de 1940), a lei para atos isolados dos componentes de seus órgãos, os vincula pessoalmente, levantando o véu da personalidade jurídica, desconsiderando-a, para tornar os diretores ou conselheiros pessoal e solidariamente responsáveis.
Não encontramos na jurisprudência de nossos tribunais, malgrado dedicada pesquisa, uma referência sequer à doutrina da desconsideração ou da penetração da personalidade jurídica das sociedades comerciais, quer nas chamadas sociedades de pessoas, quer nas sociedades de capital.
A assertiva de que a sociedade não se confunde com a pessoa dos sócios é um princípio jurídico, mas não pode ser um tabu, a entravar a própria ação do Estado, na realização de perfeita e boa justiça, que outra não é a atitude do juiz procurando esclarecer os fatos para ajustá-los ao direito.
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